A proximidade do 30 de abril deixa a família Caymmi emocionalmente abalada. “É uma data dura de a gente viver”, explica Dori Caymmi, de 66 anos, filho de Dorival. Sexta-feira que vem, o autor de Marina completaria 96 anos. Ele e a mineira Stella Maris – mortos em 2008 – se casaram justamente no último dia deste mês. “Drummond, papai e Guimarães Rosa tinham que continuar vivendo para o mundo ficar menos medíocre”, protesta Dori.
Radicado há duas décadas nos Estados Unidos, o cantor, compositor e violonista está de volta ao Brasil para lançar mais um disco. Na quarta-feira, em Ouro Preto, ele foi homenageado com a Medalha da Inconfidência, concedida a ele e ao parceiro Paulo César Pinheiro pelo governo do estado. Os dois fizeram dobradinha na genial Desenredo (“Ê, Minas/ Ê, Minas/ É hora de partir/ Eu vou/ Vou-me embora pra bem longe).
Originalmente lançado no Japão e com algumas modificações de repertório, Mundo de Dentro, o 12º álbum solo de Dori Caymmi, chega com canções literalmente traduzidas para o português, conforme exigência do autor. “Quero fazer um disco do Brasil, de língua portuguesa, cantando para meu pai e para minha mãe. Tanto que botei o retrato deles lá”, emociona-se.
“Meu contrato com o Quincy Jones dizia o seguinte: quando eu fizesse a música em português, ela ficava minha para o Brasil ou para o mundo, evidentemente. Preciso garantir minha aposentadoria. Sou músico, nunca ganhei e nem meus discos ganharam prêmios. Sempre fui posto de lado, ficando de arranjador, o que era mais cômodo. A crítica sempre foi injusta com o meu lado artístico: nunca fala de mim como cantor, como compositor. Já me acostumei, faço parte da turma do Vadico, de Noel Rosa e de vários compositores que sempre foram jogados para o lado”, discursa.
Dori garante que não tem mágoas. “Quando era garotão e estava começando, me revoltava um pouco. Depois passou, fiquei o arranjador. As pessoas acham que não sou compositor”, lamenta. Das 13 canções do novo CD, 12 são parcerias com Paulo César Pinheiro: Quebra-mar, Rio Amazonas, É o amor outra vez, Chutando lata, Delicadeza, Dia de graça, Dança do tucano, Sem poupar coração, Flauta, sanfona e viola, Mundo de dentro (assinada por Danilo Caymmi), Armadilhas de um romance e Saudade de amar.
Exceção à regra, Fora de hora, a única parceria de Dori com o amigo Chico Buarque, já havia sido gravada por Joyce e por Nana Caymmi. Entre as inéditas, além da faixa-título Mundo de dentro, estão Delicadeza (feita para os pais) e Armadilhas de um romance.
PEQUERI
Apesar da proposta de transformar a casa da família, em Pequeri, na Zona da Mata mineira, em museu ou algo parecido, Dori diz que o imóvel será mantido para os netos de Dorival. “Meu pai tinha paixão por Pequeri. Mamãe nasceu lá, mas não curtia muito não. Papai gostava do silêncio, gostava de se recolher, ficava no canto dele pintando, desenhando e ouvindo a Rádio Relógio Federal”. O cantor relembra as manias do patriarca: “Ele gostava daquele silêncio. Então, mamãe fez um escritório, um estudiozinho, onde ele ficava no canto dele olhando pássaro, formiga”. A família sente muita falta de Dorival e de Stella. “É muito difícil. Principalmente para a Nana”, confessa.
Até os 5 anos, Dori frequentava a cidade natal da mãe. “Lá, conheci goiaba, poio, carro de boi, a maria-fumaça que passava na cara da gente”, recorda. “Depois, Pequeri sumiu da nossa vida. De repente, nos Estados Unidos, soube que papai estava construindo lá. Depois de 50 anos, voltei. A cidade está linda, a mesma coisa. Só tiraram o trem e o carro de boi. É a política, a indústria automobilística”, lamenta.
SONGBOOK
Dori conta que a vida em Los Angeles, onde mora com a família, é boa. “Estou plantando a minha pimenteira, cuidando do meu pêssego, da minha macieira. Tenho um terreno e fico ali. Fiz um songbook do papai para o mercado brasileiro. A Sônia Lobo, irmã do Edu Lobo, tem uma editora aqui e está interessada. Parece que ela vai lançar songbooks do Ivan Lins e do Francis Hime de uma vez só. E ela me pediu para fazer o meu e o do papai para serem lançados entre agosto e setembro”, informa.
Dori não esconde que sempre foi contra a ideia de songbook, originalmente criado no Brasil pelo produtor Almir Chediak. Os álbuns de Almir reuniam artistas de tendências variadas para interpretar a obra de um compositor. “Fica uma coletânea babaca, eu acho. O termo é um pouco grosso, mas sem a intenção de diminuir o trabalho do Almir. A coisa fica tendenciosa, estranha. Você pega a música do papai, a música do Tom Jobim, e todo mundo canta de maneira diferente”, critica.
De acordo com o músico, no songbook do pai nada foi alterado. “Acrescento algumas coisas harmônicas, procurei descobrir os desenhos de violão dele em canções como É noite, botando uns carimbos de violão para mostrar os acordes. Às vezes, chamo a atenção da pessoa para esse lado, para a característica da música, para não ela não se perder. A maioria das canções de meu pai foi editada por Mangione, Irmãos Vitale, editores antigos. Controlamos umas 60 por meio da Editora Rosa Morena”, conta. “Não liguei muito para o fato de o editor ser o controlador da obra. Procurei ser fiel à cabeça e ao coração do papai como compositor, principalmente no que diz respeito ao mar. Tanto que, em São Paulo, estou querendo fazer um projeto sobre a música dele com orquestra sinfônica, nos 100 anos do Teatro Municipal”, revela.
SHAKIRA
Dori vem ao Brasil de três a quatro vezes por ano. “Não trabalho mais nos Estados Unidos, a música ficou esculhambada, né? As pessoas estão cantando com os seios, as coxas e tal. Estas Shakiras da vida… Particularmente, acho que não há mais mercado lá para o tipo de música que faço. Mesmo porque, pessoas mais antigas, como Herb Alpert, um cara que fazia sucesso na década de 1960, estão trabalhando nos lugares em que trabalho”, diz, orgulhoso.
“Venho para o Brasil porque gosto de trabalhar aqui. Aqui o meu trabalho rende, porque é aqui que me inspiro. Agora mesmo recebi a honraria do governo de Minas (Medalha Tiradentes). Eu e meu parceiro Paulo César Pinheiro”, comemora. Outro orgulho: o texto de apresentação do novo disco, assinado por Maria Bethânia. “Ela escreveu bonito”, conclui.